Redução de Danos: uma prática a favor da singularidade

Meu avô era marceneiro e expunha as peças que ele mesmo criava e fazia, três vezes por semana, nas duas maiores feiras de artesanato de Belo Horizonte/MG. Ele era hipertenso e retirou a próstata devido a um câncer, ficando com uma leve incontinência urinária. Meu avô só frequentava o centro de saúde para pegar e/ou renovar a medicação. Ficava irritado sempre que tinha que comparecer em uma consulta e recusava veementemente todos os convites da agente comunitária de saúde para participar dos grupos operativos da unidade. Quando questionado, ele dizia “eles só querem saber se nos dias de feira eu tomo os 2l de água e se parei de comer o pastel no fim do expediente. Eles não entendem que não dá pra beber muita água, porque passo vergonha na frente dos meus companheiros. Eles só querem saber da água e do pastel, do que faço ‘errado’, mas isso não é errado, é o certo para mim… o pastel tem o mesmo gosto do que minha mãe fazia”.

Ainda é comum se deparar com uma assistência em saúde vertical, na qual o profissional de saúde impõe, de forma diretiva, as práticas que o paciente deve seguir, desconsiderando a subjetividade do indivíduo. Se as práticas se adequam ao cotidiano do indivíduo ou se o paciente quer ou tem condições de seguir à risca as orientações, isso não importa! Todas as orientações foram passadas e, se não surtirem efeito, a culpa é exclusiva do paciente, ele que não quis se cuidar1. Esse discurso que culpabiliza o indivíduo por suas ações e comportamentos não é feito somente por profissionais de saúde, mas também por amigos, familiares, colegas de trabalho, dentre outros, gerando sofrimento duplo: primeiro por não conseguir “fazer o certo” e segundo pelo julgamento descontextualizado de terceiros.

Nesse contexto, a Redução de Danos (RD) emerge como um conjunto de políticas e práticas que visam reduzir os danos associados a um determinado comportamento nos indivíduos que não podem ou ainda não querem interromper esse ciclo comportamental2,3. Mas… como assim?

Ao retomar a história do meu avô, não havia interesse dele em ingerir os 2l de água e interromper o consumo de pastel nos dias de feira, o que gerava danos à saúde dele, como: inchaço nas pernas, maior sonolência e cansaço, alteração da pressão arterial e das taxas de colesterol. A insistência dos profissionais de saúde em suspender o consumo de pastel e cobrar o consumo de água fazem com que ele não frequente a unidade de saúde, não faça o tratamento/acompanhamento adequados, aumentando ainda mais os danos à saúde. E se a conduta fosse diferente?

Incentivar o consumo de alimentos com maior concentração de água (tomate, pepino, melancia, abacaxi…) durante os dias de feira, ao invés de focar somente no consumo de água; combinar sobre consumo de pastel apenas um dia, não todos os dias; rever o tipo de roupa e de calçado para auxiliar na redução do inchaço nas pernas; orientar repouso após o trabalho, dentre outros. Nesse caso, a prática estaria baseada na Redução de Danos, ou seja, reduzir os danos causados pela baixa ingesta de água e consumo de frituras (uma vez que não há interesse em interromper essas práticas), estabelecendo, junto com o indivíduo, estratégias menos prejudiciais à saúde e que proporcionem, consequentemente, maior autocuidado e qualidade de vida à pessoa1,3.

A origem da RD foi em 1926, na Inglaterra, quando médicos iniciaram a prescrição controlada de morfina e heroína para os dependentes dessas substâncias, com o objetivo de reduzir os danos e sintomas causados pela abstinência abrupta e de controlar a quantidade utilizada por seus pacientes4. Posteriormente, houve a entrega de seringas e insumos descartáveis para usuários de drogas injetáveis para reduzir o compartilhamento de seringas e como prevenção e redução da disseminação de doenças infectocontagiosas, principalmente AIDS e Hepatite B1.

Devido ao início das ações redutoras de danos ter sido com usuários de substâncias psicoativas, é comum associar a prática unicamente a esse contexto ou ter a compreensão equivocada de que a RD incentiva o uso dessas substâncias2,4. Em relação a essas duas afirmativas, é importante ressaltar:

1- A RD pode ser utilizada em qualquer tipo de comportamento que o indivíduo não quer ou ainda não consegue ter controle sobre o mesmo e que gera danos pessoais, familiares, econômicos ou sociais a essa pessoa4. Por exemplo:

Obesidade: dietas muito restritivas – eliminação abrupta de consumo de massas, doces, refrigerantes, bebidas alcoólicas – são mais difíceis de serem adotadas a longo prazo uma vez que demandam um comportamento alimentar totalmente distinto do adotado há anos pelo indivíduo, sendo comum ocasionar danos como isolamento social, irritabilidade, alteração do sono e compulsão. Porém, a perda de peso e diminuição da obesidade pode ser mais rápida. Por outro lado, em uma dieta equilibrada, com reeducação alimentar, que permite pequenas ingestões de alimentos que o próprio indivíduo indica como sendo mais difíceis de não serem ingeridos, a redução da obesidade é mais lenta, mas produz menos efeitos danosos, gerando mais consciência sobre o que está sendo ingerido, qualidade de vida e reduzindo a possibilidade de aumento ou manutenção da obesidade. Nesse exemplo, a dieta muito restritiva significa abstinência de consumo de certos alimentos (interrupção total) e a reeducação alimentar representa a estratégia de redução de danos (reduzir a ingestão de alimentos danosos, mudando o comportamento aos poucos e respeitando os limites do indivíduo);

População em situação de rua: os serviços de acolhimento à população em situação de rua, por exemplo o Centro POP, funcionam sob a perspectiva da redução de danos. Ao oferecer pernoite, alimentação, higienização, atendimento social e psicológico, reduzem os danos de estar na rua. É um local de acolhimento humanizado, independente dos motivos que levaram o indivíduo a estar ou permanecer na rua.

2-A RD não estimula ou incentiva o uso de sustâncias ou de qualquer outro comportamento danoso. A RD é uma prática de saúde pública, baseada na empatia, no respeito ao indivíduo e à sua singularidade, na compreensão de que todo ser humano passa por dificuldades e que a mudança comportamental é um processo difícil, mas necessário. Respeitar o limite do outro, não é incentivar o comportamento, mas é andar ao lado e oferecer estratégias com dignidade, sem moralismo ou ideal pré-estabelecido. Se o indivíduo optar pela abstinência de um comportamento e não por reduzir aos poucos esse comportamento e os danos, não há problema algum! Porque a decisão partiu do indivíduo e não foi imposta por terceiros4.

Então, na RD, não tem problema se o indivíduo mantiver o comportamento prejudicial? Não é bem assim… O fato de uma pessoa ainda não estar pronta para abandonar hábitos danosos, não impede que ela seja orientada sobre as consequências do seu comportamento. Não impede que as etapas da mudança sejam mencionadas, até mesmo para que a pessoa vá se conscientizando e entendendo o que será necessário para mudar. As estratégias para redução de danos não são estáticas, mas dinâmicas: quando o indivíduo já está adaptado a alguma mudança, outras são apresentadas, a fim de avançar, cada vez mais, na diminuição ou interrupção de um comportamento danoso.

Existem cinco estágios de qualquer processo de mudança comportamental5:

1- Pré- contemplação: há resistência à mudança, pois o indivíduo ainda enxerga mais benefícios/prazer no comportamento danoso que prejuízos associados. A preocupação dos outros é exagero! Há a negação do problema. Nessa fase, a RD é focada na conscientização sobre os problemas já apresentados pela pessoa e o que melhoraria se o comportamento mudasse.

2- Contemplação: a pessoa começa a ter consciência sobre como o comportamento está causando prejuízos à sua vida, mas ela não consegue pedir ou procurar ajuda. O indivíduo reconhece os danos, mas há sempre uma justificativa para manter o comportamento. Nessa fase, a RD aborda a ambivalência sobre a mudança e discute quais os benefícios caso o indivíduo reduza ou interrompa o hábito danoso.

3- Preparação: o indivíduo já reconhece os danos, está disposto a procurar ajuda e já pensa em pequenas mudanças que poderiam auxiliar no processo. A RD apresenta onde procurar ajuda, orienta sobre os primeiros passos da mudança e sobre as dificuldades internas e externas que serão enfrentadas (medo, insegurança, julgamentos).

4- Ação: o indivíduo coloca em prática as estratégias de mudança. É uma fase que demanda muita perseverança, porque ocorrerão recaídas e, nem por isso, o indivíduo retorna para a fase de “Pré-contemplação”. A RD auxilia na reelaboração de estratégias, no que pode ser feito para evitar novas recaídas e na valorização dos benefícios da mudança e nas conquistas já alcançadas.

5- Manutenção: é o momento de sustentar as mudanças realizadas e incorporar no cotidiano os novos hábitos mais saudáveis. Talvez seja a fase mais difícil, porque demanda continuidade dos novos hábitos e o início de mudança de outros comportamentos.

Assim, reconhecer o que é danoso, o que te faz mal, o que causa prejuízo na sua vida é um processo e, portanto, há dias em que estamos mais dispostos e sensíveis à mudança, em outros, manter o mesmo padrão de comportamento é mais fácil. Importante lembrar que, um comportamento que gera danos, comumente, também gera algum tipo de prazer associado, por isso, o indivíduo nega os prejuízos, afim de sustentar o prazer decorrente do comportamento4.

Mudar comportamento é difícil, exige esforço, renúncia e perseverança, ainda mais se amigos e familiares fazem parte das atitudes danosas (ex. beber demais nas festas universitárias com amigos, estar em um relacionamento abusivo com o parceiro/a). Se afastar dessas pessoas queridas para adotar um novo estilo de vida é cansativo, dá medo, gera dúvida, por isso que, durante o caminho da mudança, acontecem deslizes e recaídas ao padrão comportamental danoso.

Outro aspecto importante é que um comportamento não é danoso pela frequência ou pelo tempo em que é desenvolvido. É comum ouvir, por exemplo de universitários, “eu não bebo assim todo dia, eu exagero só nas calouradas, festas da faculdade ou depois da semana de prova”. Ok, não é todo dia, mas, quando há o consumo excessivo de álcool você: briga com amigos e familiares; se envolve em práticas sexuais não protegidas ou que você não faria se não estivesse embriagado; gasta excessivamente, comprometendo a sua alimentação o restante do mês; se sente inseguro e com a autoestima baixa; possui ideações de violência autoinfligida, dentre outros. O dano de um único episódio de consumo é muito maior que o de um indivíduo que bebe, moderadamente, com maior frequência. Para um comportamento ser prejudicial, você não precisa executá-lo todos os dias ou o dia todo! Pense nisso!

Por fim, incorporar a Redução de Danos no seu dia a dia ou na prática profissional é dar voz ao outro e a si mesmo, colocando o sujeito no centro do processo, com autonomia e respeitando a sua individualidade, as suas dificuldades naquele momento, mas também, apostando nos avanços, mesmo que pequenos, e traçando juntos estratégias de prevenção, promoção de cuidado e qualidade de vida. É uma prática democrática, em prol da vida, dos direitos, da liberdade, da consciência e da singularidade.

Referências

1. Lopes HP, Gonçalves AM. A política nacional de redução de danos: do paradigma da abstinência às ações de liberdade. Pesquisas e Práticas Psicossociais 13(1), 2018.

2. ABORDA. Associação Brasileira de Redução de Danos. Site: http://abordabrasil.blogspot.com/

3. Harm reduction international. What is harm reduction? HRI, 2020. Site: https://www.hri.global/

4.Surjus LTLS, Silva PC. REDUÇÃO DE DANOS: Ampliação da vida e materialização de direitos. UNIFESP, 2019.

5.Prochaska JO, Redding C.A, Evers KE. The transtheoretical model and stages of changes. In: Glanz K, Rimer BK, Viswanath K. Health behavior: theory, research, and practice, 5 ed, 2015.

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