(Re)pensando o comportamento suicida infantil

O suicídio infantil é um assunto complexo, repleto de estigmas e tabus. Ao falar sobre esse assunto, é comum ouvirmos: como é possível uma criança pensar sobre o fim da própria vida? Como alguém tão jovem pode pensar em algo tão profundo?

Ao contrário do que muitos pensam, o suicídio permeia todas as etapas do ciclo vital. No Brasil, entre 2010 e 2019, foi observado aumento no número de casos de suicídio em todos as idades, incluindo, de crianças e adolescentes1. Quando comparadas com outras faixas etárias, as taxas de suicídio em crianças são menores, porém, representam um alerta para um problema que tem desfechos trágicos.

Comumente, temos a expectativa de que uma criança possa viver os diversos ciclos da vida sem interrupções, mas as crianças podem experimentar sofrimentos importantes e apresentar risco para o suicídio. A literatura científica aponta que crianças verbalizam menos o desejo de morrer quando comparadas aos adolescentes. O sofrimento das crianças é mais expresso por meio de mudanças de comportamento (isolamento, choro fácil, agressividade, tristeza e outras situações)2,3.

Dentre os fatores de risco para o comportamento suicida infantil estão características próprias da infância como: dificuldades relacionadas à regulação emocional e expressão de necessidades, impulsividade, limitações para a resolução de problemas, sentimento de culpa por acontecimentos vivenciados, ambivalência, entre outros.

Também podem ser identificados fatores de risco ou sinais de alerta relacionados ao contexto escolar (queda abrupta do desempenho escolar, desentendimentos com colegas, bullying), social (violência, isolamento), virtual (cyberbullying, jogos de asfixia) ou familiar (funcionamento familiar, histórico familiar de depressão e suicídio, negligência, violência)2,3.

Em contrapartida, estudos também evidenciam vários fatores de proteção como: o bom relacionamento com a família e amigos, sensação de pertença, identificação de redes de apoio e relacionamentos significativos, acesso a serviços e cuidados de saúde mental qualificados, esperança, crenças religiosas e culturais, escolas, entre outros3. É válido ressaltar que esses fatores de proteção são de suma importância para dar um suporte à criança/adolescente que esteja lidando com alguma situação, na qual não consiga encontrar saída.

O sofrimento e suicídio na infância são subestimados e a capacitação profissional acerca da temática ainda é frágil, fatores que dificultam a prevenção3. Existem crenças relacionadas à morte infantojuvenil por suicídio que podem ser barreiras que interferem na definição de ações preventivas e intervenções de cuidado3, 4, 5. Nesse sentido, é necessário que algumas crenças sejam repensadas. A seguir, apresentamos algumas questões sobre os principais mitos e crenças relacionados ao comportamento suicida infantil:

“Não existe suicídio infantil”:

Embora, as taxas de suicídio infatil sejam menores, o suicídio infantil existe e é um problema importante. No Brasil, as taxas de suicídio em crianças entre 5 a 9 anos são de 0,05 por 100 mil habitantes no gênero masculino e de 0,01 por 100 mil habitantes no gênero feminino. Entre pessoas de 10 a 19 anos corresponde a 2,81 por 100 mil habitantes no gênero masculino e 1,41 por 100 mil habitantes no feminino6. Esses dados são possivelmente subnotificados por questões sociais, culturais, políticas e econômicas, ou seja, não representam a totalidade do fenômeno.

“Crianças não compreendem a morte”:

O conceito de morte está ligado à compreensão de três componentes básicos: universalidade (todos os seres vivos vão morrer), não funcionalidade (na morte todas as funções vitais cessam) e irreversibilidade (a morte não é temporária, é irreversível). Estudiosos destacam que a compreensão de todos esses componentes tende a ocorrer entre os 5 e 8 anos de idade4. Entretanto, pode variar de acordo com o histórico, contexto e vivências da criança. Além disso, a criança pode se colocar em risco significativo mesmo quando ainda tem uma compreensão parcial da morte.

“Não falar sobre a morte pode proteger a criança”:

A morte é de uma pessoa próxima pode estar associada a sentimentos de angústia, medo, revolta e abandono. É importante que esse não seja um assunto proibido e que a criança tenha oportunidades para o diálogo, dúvidas, pensamentos e expressão de sentimentos relacionados à morte. Todo esse processo pode dar gradualmente por meio de diálogos sobre situações corriqueiras (como a quebra ou perda de um brinquedo querido) ou as vivências da criança ou de colegas (morte com animais de estimação). Independente da situação, o importante é abrir diálogo, acolher dúvidas e criar espaço acolhedor para exposição de sentimentos.

“Crianças não sabem o que é o suicídio”:

Uma pesquisa canadense identificou que a maioria das crianças entre 6 e 12 anos conhecia o “ato de matar-se” e que todas as crianças que compreendiam o termo “suicídio” eram capazes de identificar um meio letal. Elas referiam ter adquirido essas informações sobre o assunto através de discussão com outras crianças ou ao ouvir conversas de adultos7.

“Crianças não sentem desejo de morrer”:

É importante entender que o suicídio é um fenômeno multifatorial (que engloba fatores pessoais, sociais, ambientais, entre outros). A infância também apresenta vulnerabilidades e adversidades que têm impacto direto e indireto na saúde mental infantil que pode ter intensidade variável. Em algumas situações, a criança pode sentir o desejo de acabar com o sofrimento vivenciado3,4.

“O sofrimento emocional de uma criança não deve ser valorizado como os outros tipos de sofrimentos (fome, doenças, pobreza)”:

É necessário encorajar a expressão de sentimentos e ter atitude acolhedora, construção de uma rede de suporte e acesso a suporte profissional qualificado. A repressão e a comparação com outros tipos de sofrimento geram angústia, culpa, podem acentuar comportamentos de risco e dificultar a busca por apoio.

“Na infância não é considerado suicídio, mas um acidente”:

A maioria das tentativas e mortes por suicídio na infância se assemelham a acidentes, pela escolha do método de perpetração8. Tal característica está relacionada ao pouco planejamento do comportamento suicida na infância. Isso não significa que todo acidente é uma tentativa de suicídio ou vice-versa. O importante é contextualizar os acontecimentos às vivências e as percepções da criança junto a rede de assistência em saúde.

“Suicídio é um assunto que não deve ser comentado com a criança”:

O comportamento suicida não deve ser um assunto proibido. As dúvidas da criança relacionados ao tema devem ser esclarecidas de forma cuidadosa, calma, que possibilite a compreensão a partir da idade e a exposição de sentimentos, sensações, dúvidas e crenças ou fantasias.

O comportamento suicida é um problema de saúde pública e a prevenção tende a ser mais efetiva se englobar diferentes setores da sociedade. Nesse sentido, requer a educação para a identificação precoce, acolhimento e a busca por suporte profissional e a redução de estigmas e tabus.

Além disso, é importante compreender que para promover a saúde mental é preciso investir em melhorias de condições de vida, defesa de direitos humanos, políticas públicas que respaldam o viver com dignidade (alimentação, educação, segurança, moradia, lazer, entre outros) e o acesso a saúde, em especial a saúde mental conforme os princípios da reforma sanitária e reforma psiquiátrica.

Se você está ou conhece alguém com sofrimento emocional ou comportamento suicida acolha sem julgamentos e procure ajuda profissional. A ajuda profissional gratuita é possível a partir dos serviços básicos e especializados disponibilizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Conheça também o Centro de Valorização da Vida (CVV), trabalho voluntário para acolhimento emocional disponível 24 horas/dia através do telefone 188 ou o website www.cvv.org.br.

Referências

1. Brasil. Secretaria de Vigilância em Saúde. Ministério da Saúde. Mortalidade por suicídio e notificações de lesões autoprovocadas no Brasil. Boletim epidemiológico [internet]. 2021. [Citado em 19/04/2022]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/boletins-epidemiologicos/edicoes/2021/boletim_epidemiologico_svs_33_final.pdf

2. Seminotti, E.P. Suicídio infantil: reflexões sobre o cuidado médico. Psicologia [internet]. 2011. [Citado em 19/04/2022]. Disponível em https://www.psicologia.pt/artigos/textos/A0571.pdf

3. Sousa, G.S, Santos, M, Silva, ATP, Perrelli, JGA, SOUGEY, E.B.. Revisão de literatura sobre suicídio na infância. Cien Saude Colet [periódico na internet]. 2017. [Citado em 19/04/2022]. Disponível em: http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/revisao-de-literatura-sobre-suicidio-na-infancia/16344?id=16344

4. Kuczynski, E. Suicídio na infância e adolescência. Psicologia USP [internet]. 2014; 25(3): 246-252 (2014). [Citado em 19/04/2022]. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-6564D20140005

5. Filho, OCS, Minayo, MCS. Triplo tabu: sobre o suicídio na infância e na adolescência. 2021; 26(7):2693-2698. [Citado em 19/04/2022]. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-81232021267.07302021

6. Opas. Suicídio. 2014. [Citado em 19/04/2022]. Disponível em: https://www.paho.org/pt/topicos/suicidio

7. Mishara, B.L. Conceptions of Death and Suicide in Children Ages 6-12 and Their Implications for Suicide Prevention. Suicide and Life-Threatening Behavior. 1999; 29(2).[Citado em 19/04/2022]. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/10407964/

8. Ferrara, P. et al. A focus on recent cases of suicides among Italian children and adolescents and a review of literature. Italian journal of pediatrics, EUA. 2014; 40(1): 69. [Citado em 19/04/2022]. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4445587/

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